segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Dia de mudança

Era manhãzinha fria e branca do dia de mudança.

A casa ainda estava cheia de coisas: mamãe gritando ordens por todos os lados, com aquela urgência materna totalmente desnecessária. As mães nunca percebem que não importa o quanto você se adiante ou se esforce pra fazer as coisas, elas só ficam prontas quando querem. As minhas coisas, por exemplo, nem adianta insistir: só ficam prontas dois minutos depois da última hora.

Outro dia mesmo, terça-feira se não me engano, precisava dar um presente pro meu tamanduá quando júpiter alinhasse com saturno, sem falta. É claro, pesquisei vários tipos de formigas, passei a tarde catando saúvas, tanajuras e caiapós. Tentei achar cupinzeiros também, mas eles estavam em falta, o moço da loja falou que só chegavam semana que vem. Acontece que depois de horas, tudo que eu tinha conseguido eram muitas picadas e algumas amigas (fiquei um tempão conversando com duas tanajuras engraçadissímas, mas isso é outra história). Imagine o meu desespero quando a última hora chegou e eu não tinha conseguido nada! E vocês sabem como é a última hora, toda nervosa, sempre falando depressa e esbugalhando os olhos pretos detrás daqueles óculos. Sorte que eu me dou bem com ela, somos amigos!

Bem, mas aí chegou a última hora, junto com meu tamanduá. E eles já estavam alinhados! (os planetas, não meu tamanduá e a dona última - esta eu nunca vi alinhada com ninguém). Mas aí passaram dois minutos, e batata: me empetequei, botei o chapéu de lado e recitei bem alto:

Meu querido amigo senhor tamanduá-bandeira,
Me desculpe por esses versinhos de brincadeira
Mas são o que eu tenho, e você vai ter que se virar
Porque são do coração, e não há melhor lugar!

Queria te dar de todos o melhor presente
Queria te fazer dar cambalhotas de contente
Queria te demonstrar todo o meu afeto
Queria te dar de todos o melhor inseto!

Hoje passei o dia procurando formiga e cupim
Mas o que parecia fácil não se mostrou tanto assim!
Não encontrei nada deligostoso ou suculento
Falhei na minha tarefa, e por isso eu lamento!

E agora você não pode mais encher a pança
Mas em troca, lhe ofereço essa lembrança!

E dei um beijo no meu amigo tamanduá. Foi esquisito, mas ele gostou muito. Deu até uma cambalhota de contente. E isso é só um exemplo de como as coisas só ficam prontas quando elas querem.

Mas bem, era dia de mudança. E, segundo o título, essa história é sobre o dia de mudança, e não sobre o que eu fiz terça-feira.

Bem, esse dia eu passei inteiro empacotando, encaixotando, empilhando, arrumando, e vários outros verbos no gerúndio também. Foi divertido até arrumar as caixas: coloquei o armário, as portas, meu cachorro Tobias, o pó de café, o oito, o Q, o T, meus livros de contos, meu fígado e o tédio na caixa das coisas marrons. O 8 não gostou muito do aperto, você sabe como ele é, todo orgulhoso. Gostei de arrumar a caixa das coisas lindas. Botei um barco a vela, uma risada molhada na chuva, um ipê roxo bem grande, a Arte e todas as mulheres do mundo. Deixei um lugarzinho especial pra minha namorada. Pensei em colocar o céu, mas preferi levar na mão mesmo.

Fui encaixotando tudo: tinha a caixa das coisas duras, das coisas que me fazem cócegas por dentro, das coisas incrivelmente complicadas, caixa das cores, caixa das dores, caixa dos amores. Caixa das rimas baratas. Caixa das coisas grandes, caixa das coisas pequenas. Caixas dos sentimentos, caixa dos medos. Gostei muito de organizar a caixa dos sonhos, foi bem colorido. Ela foi direto pra dentro da caixa das ideias, que só não era a maior caixa de todas porque eu não sou tão inteligente assim. Eu fiquei um tempão pra organizar a caixa das coisas perdidas, mas não sei onde ela foi parar.

Já era de tarde quando eu acabei de guardar o poema aí de cima na caixa das coisas da última hora. Aí eu deixei ela separada das outras pra dar pra verdadeira dona quando ela chegar. Obviamente deixei a caixa aberta, já que com certeza teria que por mais coisas dentro até a proprietária aparecer. Na verdade, teria que fechar a caixa dois minutos depois da dona ter levado a caixa embora, o que seria um problema. Bem, deixo pra pensar nisso dois minutos depois.

E aí, quando eu menos esperava, já tinha empacotado tudo. Menos eu mesmo, já que alguém tinha que ficar de fora, o céu, que eu queria levar na mão, e o tempo, pras coisas não acontecerem todas de uma vez. Só precisava chegar o caminhão da mudança.

Não, eu não empacotei o caminhão da mudança. Quase certeza que não.

E bem, como vocês já devem saber nessa altura, o caminhão só ia chegar dois minutos depois da última hora. Agora era só esperar.

Então eu esperei.


E esperei.





E esperei.




(hum, ele deve estar perto agora)







E esperei.













(provavelmente deve estar preso no trânsito)


(será que aconteceu alguma coisa?)




E esperei.


Aí, lá longepertodentroforaemcimaembaixoatrásnafrenteedolado (eu tinha guardado o espaço na caixa das coisas grandes), chegou dona última hora. Ufa, já estava ficando preocupado. Ela pegou a caixa dela e foi embora sem dizer nada (a comunicação estava bem guardada na caixa das coisas incrivelmente complicadas). Agora era só esperar mais dois minutinhos, e pronto! O caminhão ia chegar e eu poderia finalmente me mudar. É bacana, esse caminhão de mudança. Deveriam existir mais por aí. Mas então eu esperei: um minuto, um minuto e meio, um minuto e 58, 59...

DOIS MINUTOS...

Dois minutos e um segundo, dois, três segundos, e nada, em lugar nenhum. Mas hein?! E o caminhão da mudança?! (2 min e 10s) Era pra ele já ter chegado, com certeza absoluta, era pra ele ter chegado já. Passaram dois minutos da última hora, era pra ele ter acontecido sem sombra de dúvida, não é assim que as coisas fazem? Realmente, DEVE ter acontecido alguma coisa. E eu já precisava ter mudado. É muito importante mudar de vez em sempre, senão você acaba parado. Aí todo mundo te ultrapassa e você fica sozinho, porque todo mundo se muda uma hora ou outra. Tem gente que até gosta da solidão, do espaço, essas coisas. Mas a solidão nunca vale a pena se você não tem ninguém pra ficar sozinho com você, pode confiar em mim. E por isso ninguém quer ficar parado! Eu não, pelo menos, nananinanão, de jeito nenhum. Eu tenho que mudar, eu preciso mudar! Eu QUERO mudar! (3 minutos e 50). Aí tchum, caiu a ficha - percebi que o caminhão da mudança não ia chegar nunca, que besteira a minha! Não existe caminhão de mudança. A mudança não vem num caminhão gordo feio e fedido. Não faz o menor sentido esperar a mudança!

Aí eu abri a caixa das coisas divertidas, peguei minha bicicleta azul e saí pedalando, dois minutos depois de dois minutos depois da última hora. Me mudei eu mesmo, como eu aprendi que é o único jeito de mudar. Meu endereço?

Não sei assim de cabeça não. Mas se você quiser, é só mudar também que a gente vira vizinho!